Há ruas que são
tímidas, complexas, preconceituosas, evangélicas, promíscuas,
livres, sentimentais. Ainda não sei exato, um nome que caracteriza
minha rua, talvez direita. Quando começa a clarear, vou apagando,
mas não de uma vez só. Num cochilo gostoso escuto as primeiras
vozes, a dos trabalhadores. E só vai chegando, passando, parando
gente. Muitos milhões de pés surgem desvairados. Vejo tudo, até o
mais profundo de minha rua. Amo essa gente que vai, sem medo, que
vive. Sou lampião, mas não o da Maria Bonita. E fomos fixados aqui,
do lado direito, da Rua Direita, no século XVIII. E faz tempo. Não
tenho pernas, não tenho olhos, mas tenho memória. E a minha rua não
apaga nada. De uns séculos pra cá, muita coisa mudou. Pensei até
que minha rua tinha um pouco da rua de Monet, a Montorgueil, em
Paris. Mas isso foi coisa que ouvi, daqui de cima. Estou meio velho,
no entanto, entendo tudo dessa minha rua que morre de silêncio
quando chega à noite. E acendo novamente, forte e faço luz.
A noite é só
mistério, ares de nostalgia, de um tempo que nem sei. Vivo o
presente, o “instante já”, mas é difícil enxergar, estar nele.
Não vou negar, sinto falta dos carros antigos, das rodas que
passavam devagar, dos encontros românticos demorados, das serestas
ao lado da minha amiga janela desbotada pelo tempo. Bons tempos e vi
tudo se transformar. As cores das casas, das portas, dos vestidos
cada vez mais encurtados. E comércios vão e vem, sem ordem.
De dia é uma
loucura, literalmente. Celular, celulares, dinheiro, artesanato, um e
noventa e nove, vasilhas, colheres baratas. Barata também tem, à
noite. Sapatos a rodo. Camisetas penduradas com desenhos de Ouro
Preto, tapetes e papelarias, aos montes. A Rua Direita de Mariana é
mais comportada que a de Ouro Preto. Calma. Não sou eu quem diz, as
pessoas vão falando. Tem gente que fica aqui, no frio, namorando,
mas não embaixo de mim, eles preferem o escurinho. Tem gente que
fica lá, subindo e descendo a ladeira, descontrolados. É que minha
rua não é noturna, rua de balada, de cafés. Um pouco monótona,
mas eu gosto. As vezes quero movimento, música. E passa aquele cara
com um fone no ouvido e penso: aumenta essa música aí! Onde estão
as caixas de som? Quero luz. Sou lampião e memória viva. E não
esqueço um dia em que me tiraram daqui, por alguns instantes, pra
trocar minha cor. Preto no preto. Foi ótimo, comecei a ver as cucas
legais e a modernidade chegar, sem medo. Porque as coisas mudam e eu
também.
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