segunda-feira, 11 de novembro de 2013

O diálogo com a escrita

Ontem me senti velha, apesar da pequena idade. Nesse mesmo dia eu comecei a escrever. Mas isso aconteceu ontem, no passado. Eu conversei com ela, com a escrita. Disse o quanto tenho medo de nós, do que possa acontecer depois dessa palavra. Sentei de frente para o jardim, no centro, a cadeira firme, os pés bem apoiados. Eu no meio do jardim quadrado, paredes brancas e suaves. A mistura do sépia, as luzes amarelas fechadas encostadas ao chão, numa distância confortável que pudesse iluminar a parede esquerda, a das samambaias entrelaçadas às orquídeas. Exatamente um verde sépia, uma cor antiga. Eu vi meu rosto. A cara branca, o fundo dos olhos sem história. Eu vi meus olhos tristes e velhos. Eu me senti cansada e envelhecida justamente na fina dobra em cima do olho. Vi o peso das casas, os tijolos pendurados nos cílios. Cai no meu corpo para ver que peso real eu tenho.

No instante em que sentei na cadeira de acolchoado branco quase macio, acendi meu cigarro como se fosse o último, e estranho. Foi nessa pausa entre a chama do isqueiro: encontrei com ela tão pulsante e ela escorria em letras no concreto acinzentado que cobre a terra do jardim. As plantas, já nem sei se eram plantas, pareciam tão vivas e verticais agarradas até o final da parede, tão humanas, agitadas e barulhentas. Pareciam mulheres de boca larga, lúcidas e profundas. Conversei com a escrita, contei a ela uma história curta de minha infância, um exercício de escola. Ela riu, achou que não era importante o fato da minha professora de português duvidar se eu havia escrito um haicai ou se havia copiado. Fiquei nervosa, apesar de ser aparentemente tranqüila na casca. Pois falei alto, me posicionei como se tivesse, naquela idade, me tornado uma mulher. Gritei escondida dentro do pensamento. Eu escrevi, disse com a própria voz àquela quase mulher interessante.

Há quanto tempo não escrevo nada. Eu comecei ontem, mas parece tarde. Como se meu corpo tivesse acordado, longe, do outro lado das cidades sem fim. Distante como eu e meu pai. Pois ainda na cadeira, cruzei as pernas, usava um chinelo marrom, um pijama verde como seu eu fizesse parte da composição arquitetônica do jardim, os ramos finos e infantis de algumas plantas, pêlos ainda na raiz, ingênuos como o de meninas. Levantei expansiva e comecei a conversar mexendo as mãos de forma tão racional e segura que fui mesmo, nesta noite, pura intuição. 

Meu corpo parece pronto. Entende? Eu me enlacei em você, mas porque só agora. Penso que ficamos distantes por anos sem ter a dimensão da história. Eu sei que você estava escrevendo o mundo, no entanto, você é mais que uma representação de nós. Ela me olhou como se eu a ofendesse. Um silêncio, uma pausa do escrever e não do pensamento, o que já era esperado. Nós sabemos. Quanto mais se escreve, mais silêncio. É como escrever o desejo em um deserto? E os desertos sempre me parecem mergulhados no mistério. Eu não sei, ao certo, a que tipo de escrita você é. Prefiro que seja nenhuma, mas que seja necessária. E confesso: eu duvido de nós. Estamos mais perto do fracasso, na beirada da madeira, na borda. No porto. Parecemos falsas, você não concorda? Também não sei responder. Talvez falsas, inventivas e verdadeiras. Talvez eu tenha encontrado aquilo que ultrapassa uma inteireza e olha como você é grande se considerarmos os nossos buracos, as nossas lacunas, os nossos furos, a nossa incansável e frágil busca. 

E depois que nos encontramos na noite de ontem, em que tudo era vivo demais, um dia lúcido em que nós denominados de perigoso, quase uma tormenta de desejos confusos, vi o quanto sua epiderme estava atravessada pela fragilidade dos dias e dos anos. Percebi que você tinha buracos no corpo, assim como eu. Saber do seu vazio não me causou nenhuma decepção, escutar o seu abismo e sua escrita da escrita vomitava apressada quase o pensamento, mas sabemos da impossibilidade de dizer tudo, por isso, o quase. Nem você que é a própria escrita, pode dizer tudo. O fato é que você escrita é incompleta como as mulheres, mesmo as mais lúcidas. Estas mulheres são tão especiais, embora, estas sejam inteiramente perigosas. Talvez eu não enxergue o quanto tenho me inscrito nesta palavra. Mas eu tenho a leve sensação de que quando você escreve essa palavra direcionada a mim, você se torna uma delas sem perceber, porque o efeito que causei em você com os meus escritos a faz ser você mesma o seu próprio perigo. Isso não é uma pergunta, apesar de ver seu ponto de interrogação. 

Estava delirante. Foi importante saber que você não preencheu nada, que você, às vezes, não se considera a própria escrita. Em que instante, pela madrugada, me enlacei em você e de um puro, puro sentimento, compreendi que meu corpo assim como as minhas palavras dançam sem pausa alguma?

E você me aparece no mês de novembro, no momento em que escutava as maritacas na arvore alta na frente de casa. Digo isso, porque sei que nosso diálogo não será breve, e vou esquecer, certamente, as maritacas do mês de novembro. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

menino mediano

Tomei um café com os lábios acelerados mesmo sabendo que não estava atrasada para o vôo. Na verdade havia chegado há muito tempo no aeroporto de Confins. Talvez, nesses minutos de descanso, já pensava em São Paulo e na multidão que nada se parece a multidão de Ouro Preto. Ansiosa, tentei segurar as pernas como faço exatos 26 anos. Elas já aprenderam a se movimentar sozinhas como se nenhum impulso partisse de mim, às vezes me parecem tão solitárias. Pensei na escrita, peguei o livro da Clarice Lispector e logo larguei. Lembrei do livro do Kafka, Carta ao pai, quis ler de novo, mas não seria uma leitura fácil. Depois uma linha fina me atravessou trazendo palavras. Fiquei tomada por escrever algo no meu caderno, mas a sensação passou, porque inventei que ele estava no fundo da mochila. Desisti. Sentada na cadeira, eu era a própria ansiedade que já escapa a qualquer controle, mesmo sabendo que tento controlar tudo.

Na mesa da frente, um menino de sobrancelhas largas e rosto bem definido. Fiquei ali tomando meu café e olhando para ele. Penso que não fui nada discreta. É que seu rosto tinha outra idade, sua maneira distinta de sentar-se à mesa, sua coluna decidida. Seu pai a frente e a mãe ao lado. Pois ele encarava o pai como se vivesse uma batalha, uma guerra escondida. Imaginei que a essa altura da vida, o menino já havia escrito uma carta ao pai, dizendo coisas terríveis sem medo algum, confessando o seu desprezo e o seu ódio e poderia a qualquer momento entregá-la, não no final da vida, mas, naquele dia. O texto não seria bom, mas necessário como a escrita. E seu olhar era tão irônico que até fiquei com medo daquele menino mediano. O pai o olhava, mas não consegui identificar a que sensação o olhar cínico do filho lhe causava, por menor que fosse o efeito. Depois, ele pegou o celular e ali, de frente para a tela, olhava seu nariz um tanto empinado como ele. Parou a fotografia da cara no buraco direito, posteriormente, passou para o buraco esquerdo. Deslizava a mão levemente pelos dois buracos tentando limpar os resquícios e, realmente, parecia ilusória a sua tentativa de limpar o nariz que nada tinha de sujo, pelo menos da distância a que meus olhos viam. 

A mãe, nada. Era como se não estivesse em família. Flutuava sem saber, o corpo longe, a mesa pequena, as respirações entrecortadas e isso não era motivo para sentir aproximação alguma. Desviei o olhar por alguns segundos e nesse intervalo do meu olho, pensei em escrever uma carta ao meu pai, mas não tenho tanta coragem, pelo menos, agora, no presente. E não seria uma escrita fácil, pelo contrário, seria dolorida como nosso passado, mas me sinto tão lúcida que sei com tamanha clareza que essas palavras são necessárias. No entanto, não me sinto preparada, talvez não tivesse o prazer do texto, pois seria uma escrita perigosa. Tenho pensado no perigo que atravessa as palavras e como tem me consumido enxergar o meu fracasso diante delas. Olhei para o menino novamente e quando a família se levantou, ele já havia me invadido demais, resolvi fumar. 

Ainda embriagada por aquela cara grande, a do menino, outra cara apareceu em segundos. Barba grossa, rosto fino, alma solta: lembra de mim? Assustada, pesquisei nos arquivos da memória aquele rosto e nada. Alguns segundos e disse: tira o óculos escuro, falei um pouco nervosa sem saber por qual motivo. Amigo da sua irmã, disse rapidamente, pois estava atrasado. Saiu apressado, disse adeus, acenei com a mão e ele seguiu. Voltou depois de alguns minutos, tomou um café, bebi sua água, ele me chamou de Mariana pela segunda vez e se apresentou: meu nome é Luís. Pensei dentro do pensamento, o nome do meu pai. Esqueci de imediato. Eu só sei que o Luís planta, que vive no meio do mato, que gosta de andar sem rumo, que o Luís ao mesmo tempo em que sabe da arte dizer, sabe da arte de pensar e fazer, apesar das contradições que não tive tempo de perceber, a não ser as minhas. Falamos sem parar, quanto assunto havia entre nós. Ele seguiu, eu fiquei. 

Entrei no avião aflita, realmente percebi que tenho medo dessas coisas que flutuam. Abri o livro da Clarice, Perto do Coração Selvagem, engoli as páginas tentando achar algo que preenchesse tamanho vazio ou que me aproximasse do chão. Leitura errada. Eu buscava uma frase, uma única. A mulher ao meu lado lia algo sobre negócios e imaginei, mesmo perto dela, da distância de nossas leituras. Que nada, talvez buscasse algo, o livro parecia um guia de como se fazer bons negócios e viver disso. Talvez esse era o livro certo pra mim, um livro prático. Realmente não estava tão longe dela, sempre buscamos algo mesmo sem saber o que é que se busca? 

Guarulhos. Cheguei. Os pés no chão e o pescoço, como sempre, duro. O corpo quase concreto. Senti uma leveza, mas logo escondi a liberdade de estar sozinha, tencionei as pernas, me senti funda e densa, estava em São Paulo. E quantas pessoas eu vi e que poderia descrever a tinta de cada olho, mas não se pode escrever tudo. O menino ficou em mim, aquele olho de bicho maldoso, falso e era apenas um menino, invento uma lucidez agora. E que mal tem se me pareço igual a ele, falsa dos olhos.