Ontem me senti velha,
apesar da pequena idade. Nesse mesmo dia eu comecei a escrever. Mas isso
aconteceu ontem, no passado. Eu conversei com ela, com a escrita. Disse o
quanto tenho medo de nós, do que possa acontecer depois dessa palavra. Sentei
de frente para o jardim, no centro, a cadeira firme, os pés bem apoiados. Eu no
meio do jardim quadrado, paredes brancas e suaves. A mistura do sépia, as luzes
amarelas fechadas encostadas ao chão, numa distância confortável que pudesse
iluminar a parede esquerda, a das samambaias entrelaçadas às orquídeas.
Exatamente um verde sépia, uma cor antiga. Eu vi meu rosto. A cara branca, o
fundo dos olhos sem história. Eu vi meus olhos tristes e velhos. Eu me senti
cansada e envelhecida justamente na fina dobra em cima do olho. Vi o peso das
casas, os tijolos pendurados nos cílios. Cai no meu corpo para ver que peso
real eu tenho.
No instante em que sentei na
cadeira de acolchoado branco quase macio, acendi meu cigarro como se fosse o
último, e estranho. Foi nessa pausa entre a chama do isqueiro: encontrei com
ela tão pulsante e ela escorria em letras no concreto acinzentado que cobre a
terra do jardim. As plantas, já nem sei se eram plantas, pareciam tão vivas e
verticais agarradas até o final da parede, tão humanas, agitadas e barulhentas.
Pareciam mulheres de boca larga, lúcidas e profundas. Conversei com a escrita,
contei a ela uma história curta de minha infância, um exercício de escola. Ela
riu, achou que não era importante o fato da minha professora de português
duvidar se eu havia escrito um haicai ou se havia copiado. Fiquei nervosa,
apesar de ser aparentemente tranqüila na casca. Pois falei alto, me posicionei
como se tivesse, naquela idade, me tornado uma mulher. Gritei escondida dentro
do pensamento. Eu escrevi, disse com a própria voz àquela quase mulher
interessante.
Há quanto tempo não escrevo nada.
Eu comecei ontem, mas parece tarde. Como se meu corpo tivesse acordado, longe,
do outro lado das cidades sem fim. Distante como eu e meu pai. Pois ainda na
cadeira, cruzei as pernas, usava um chinelo marrom, um pijama verde como seu eu
fizesse parte da composição arquitetônica do jardim, os ramos finos e infantis de
algumas plantas, pêlos ainda na raiz, ingênuos como o de meninas. Levantei
expansiva e comecei a conversar mexendo as mãos de forma tão racional e segura que fui mesmo, nesta noite, pura intuição.
Meu corpo parece pronto. Entende?
Eu me enlacei em você, mas porque só agora. Penso que ficamos distantes por
anos sem ter a dimensão da história. Eu sei que você estava escrevendo o mundo,
no entanto, você é mais que uma representação de nós. Ela me olhou como se eu a
ofendesse. Um silêncio, uma pausa do escrever e não do pensamento, o que já era
esperado. Nós sabemos. Quanto mais se escreve, mais silêncio. É como escrever o
desejo em um deserto? E os desertos sempre me parecem mergulhados no mistério. Eu
não sei, ao certo, a que tipo de escrita você é. Prefiro que seja nenhuma, mas
que seja necessária. E confesso: eu duvido de nós. Estamos mais perto
do fracasso, na beirada da madeira, na borda. No porto. Parecemos falsas, você
não concorda? Também não sei responder. Talvez falsas, inventivas e
verdadeiras. Talvez eu tenha encontrado aquilo que ultrapassa uma inteireza e
olha como você é grande se considerarmos os nossos buracos, as nossas lacunas,
os nossos furos, a nossa incansável e frágil busca.
E depois que nos
encontramos na noite de ontem, em que tudo era vivo demais, um dia lúcido em
que nós denominados de perigoso, quase uma tormenta de desejos confusos, vi o
quanto sua epiderme estava atravessada pela fragilidade dos dias e dos anos.
Percebi que você tinha buracos no corpo, assim como eu. Saber do seu vazio não me causou nenhuma decepção, escutar o seu abismo e sua
escrita da escrita vomitava apressada quase o pensamento, mas sabemos da
impossibilidade de dizer tudo, por isso, o quase. Nem você que é a própria
escrita, pode dizer tudo. O fato é que você escrita é incompleta como as mulheres,
mesmo as mais lúcidas. Estas mulheres são tão especiais, embora, estas sejam
inteiramente perigosas. Talvez eu não enxergue o quanto tenho me inscrito nesta
palavra. Mas eu tenho a leve sensação de que quando você escreve essa palavra
direcionada a mim, você se torna uma delas sem perceber, porque o efeito que
causei em você com os meus escritos a faz ser você mesma o seu próprio perigo.
Isso não é uma pergunta, apesar de ver seu ponto de interrogação.
Estava
delirante. Foi importante saber que você não preencheu nada, que você, às
vezes, não se considera a própria escrita. Em que instante, pela
madrugada, me enlacei em você e de um puro, puro sentimento, compreendi que meu
corpo assim como as minhas palavras dançam sem pausa alguma?
E você me aparece no mês de
novembro, no momento em que escutava as maritacas na arvore alta na frente de
casa. Digo isso, porque sei que nosso diálogo não será breve, e vou esquecer,
certamente, as maritacas do mês de novembro.
ficou bonito o rosto novo do blog... essa madeira marrom no fundo... bonita mesmo... dá pra escutar daqui o barulho das letras na madeira... um corpo a escrever... a chama... e ainda bem que chama... uma chama que não cessa de não se escrever...
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