No primeiro dia
minha mãe disse tranquila crua: vá molhar o pé no mar. Eu, que já sabia o
quanto era obcecado por suas pernas, pensei se trocaria ela pela imensidão
assustadora. Olhei fixamente em seus olhos como de costume. Ela virou o rosto.
Devia ter medo de mim, do meu amor, dos meus olhos de fome. Segurei em sua
perna quase arranhando suas coxas, aquele cheiro de creme que era naturalmente
dela. Mas corri leve e sincero. Corri ofegante em direção ao mar. As pernas
finas, tortas, inconsequentes. Esbarrei desajeitado nos homens que olhavam de
longe as ondas repetitivas, mas nunca iguais. Homens covardes que protegiam as
mulheres deitadas esfolando o corpo submisso na areia que invadia os cantos e a
dobra dos seios rodeando os bicos escuros e caídos. Depois a areia se ajeitava
nas virilhas misturada aos pelos cheios e grossos que vazavam nas laterais. A
primeira onda tocou os meus dedos. Gostei do molhado. Aquela espuma febril ao
mesmo tempo morna. Arrisquei um passo quase atrás. Segui. A água batendo na
canela. Os pelos eriçados da brisa que suava medrosa. As pequenas gotas
encrustadas, gordas de sal, presas a minha pele de menino. A metade do corpo
livre, outra submersa, a areia comendo o tornozelo lá embaixo. Já era um
menino, voltar explicaria meu fracasso. O olhar de minha mãe escreveria a
palavra covardia. E sabia, eu sabia que os homens já nasciam com o peso do
mundo, de serem homens de ombros largos e fortes. Embaraçado, olhei os
guarda-sóis distantes. E foi nesse dia, minha mãe foi embora. Eu era apenas um
menino. Troquei-a pelo mar e ela seguiu me trocando por outras vidas. Mas não
preciso dar explicações, porque não sei. Havia um mistério nesse dia, ela
estava triste e ansiosa, eu vi. A água ressaqueada de urina limpava meu umbigo
sujo que nunca haviam limpado. A segunda onda me deu uma rasteira madura.
Afundei na horizontal, a água invadia todos os meus buracos. Comi sem querer
comer o meu catarro e o abandono. O sal ressecando a boca. Eu ali, ia e não ia,
afogava no mesmo lugar. Um ato medíocre do mar. Girava feito o mundo, espatifado,
encoberto. O corpo em fragmentos de tanto rolar: só era um menino engolindo
pela primeira vez o desespero de viver. E a culpa foi minha e do mar, é essa
ânsia de abraçar e molhar tudo, de ser grande. Depois alguém me puxou
bruscamente pelo braço direito feito peixe morto pendurado, enganchado. Mas
esperava a mão dura de minha mãe e ela não veio. Não era mais um menino.
Minha barba tem o formato do abandono. Hoje arrastei lá de casa, há poucos metros daqui, em tropeços, a cadeira em que minha descansava nas tardes inúteis de domingo, sempre com um pano nos olhos para não ver a claridade, fingindo um cochilo, o silêncio. Os pés tortos da cadeira construíram retas na areia, o caminho linear de minha vida. Sentei de costas para você e desculpe as curvas de minha coluna, foi o tempo da espera. Ainda não te perdoei. Mesmo sem te ver, imagino as ondas tristes e sujas. Os homens também te feriram, eu sei. As garrafas boiando, a merda toda deles que limpam a bunda como eu, mas sempre sentem os restos e disfarçam o que ficou. Esquecem. E você vai e sempre volta. Nunca se ausenta. Muda o ritmo e a cor. É essa facilidade de ser diferente a cada minuto da vida. E minha mãe nunca mais voltou. E fico, espero até nem sei. Confesso que você me dá essa esperança funda de que como as ondas, ela vai voltar mesmo velha, arrastando a velhice pela pele. Amassada, covarde como eu, ma vai voltar não tão elegante, e sim, crua dos olhos.
Eu sou o mesmo homem, não mudei em nada. Isso é tão triste, eu sei. Também não perdoei quase ninguém. Não sei ser generoso com o mundo, não sei ser de graça. Ontem vi uma mulher com a perna ferida, exposta. As moscas lambiam a espuma da perna dela. E não era só a perna que estava inflamada, coberta de pus, amarelada como um estômago que só sabe pedir. É o mundo. É você. Sou eu. E não consegui ajuda-la. Eu tentei, mas também a culpo de algo que eu não sei. Estamos a sós.Já esperava esse momento, te conheço há muito, mesmo de longe. Observei seu modo de operar da janela de casa. Os horários em que você se esconde. O momento em que cresce e sente fome. Eu me tornei um homem obcecado por você, já que não tinha a quem mais olhar.
Olho para o relógio, a perna traseira da cadeira quebra. A espuma bate, esse é o instante em que você se sente poderoso como os homens imbecis, repete o mesmo ato, sempre consciente, sabido de tudo. É na beirada que você engole, quando a tarde some, quando o sol falta. Tudo falta. A cadeira afunda e encontra uma posição, depois desorganiza como nossas cabeças ocas. Nós somos culpados. De costas o medo aumenta. Sempre achei perigoso sentar à beira. Finjo força, enfrento sua imundice novamente. Eu só quero ser aceito por alguém, pela morte. Olho a cidade vazia, a casa de minha mãe escura como se estivesse toda ela vestida de cobertor, abraçada e quente. É só isso, um abraço molhado e talvez te perdoe.
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