Tomei um café com os lábios acelerados mesmo sabendo que não estava
atrasada para o vôo. Na verdade havia chegado há muito tempo no aeroporto de
Confins. Talvez, nesses minutos de descanso, já pensava em São Paulo e na
multidão que nada se parece a multidão de Ouro Preto. Ansiosa, tentei segurar
as pernas como faço exatos 26 anos. Elas já aprenderam a se movimentar sozinhas
como se nenhum impulso partisse de mim, às vezes me parecem tão solitárias.
Pensei na escrita, peguei o livro da Clarice Lispector e logo larguei. Lembrei
do livro do Kafka, Carta ao pai, quis ler de novo, mas não seria uma leitura
fácil. Depois uma linha fina me atravessou trazendo palavras. Fiquei tomada por
escrever algo no meu caderno, mas a sensação passou, porque inventei que ele estava
no fundo da mochila. Desisti. Sentada na cadeira, eu era a própria ansiedade
que já escapa a qualquer controle, mesmo sabendo que tento controlar tudo.
Na mesa da frente, um menino de sobrancelhas largas e rosto bem definido.
Fiquei ali tomando meu café e olhando para ele. Penso que não fui nada
discreta. É que seu rosto tinha outra idade, sua maneira distinta de sentar-se
à mesa, sua coluna decidida. Seu pai a frente e a mãe ao lado. Pois ele
encarava o pai como se vivesse uma batalha, uma guerra escondida. Imaginei que a essa altura da vida, o menino já havia escrito uma carta ao pai, dizendo
coisas terríveis sem medo algum, confessando o seu desprezo e o seu ódio e
poderia a qualquer momento entregá-la, não no final da vida, mas, naquele dia.
O texto não seria bom, mas necessário como a escrita. E seu olhar era tão
irônico que até fiquei com medo daquele menino mediano. O pai o olhava, mas não
consegui identificar a que sensação o olhar cínico do filho lhe causava, por
menor que fosse o efeito. Depois, ele pegou o celular e ali, de frente para a
tela, olhava seu nariz um tanto empinado como ele. Parou a fotografia da cara
no buraco direito, posteriormente, passou para o buraco esquerdo. Deslizava a
mão levemente pelos dois buracos tentando limpar os resquícios e, realmente, parecia
ilusória a sua tentativa de limpar o nariz que nada tinha de sujo, pelo menos
da distância a que meus olhos viam.
A mãe, nada. Era como se não estivesse em
família. Flutuava sem saber, o corpo longe, a mesa pequena, as respirações
entrecortadas e isso não era motivo para sentir aproximação alguma. Desviei o
olhar por alguns segundos e nesse intervalo do meu olho, pensei em escrever uma
carta ao meu pai, mas não tenho tanta coragem, pelo menos, agora, no presente.
E não seria uma escrita fácil, pelo contrário, seria dolorida como nosso
passado, mas me sinto tão lúcida que sei com tamanha clareza que essas palavras
são necessárias. No entanto, não me sinto preparada, talvez não tivesse o
prazer do texto, pois seria uma escrita perigosa. Tenho pensado no perigo que
atravessa as palavras e como tem me consumido enxergar o meu fracasso diante
delas. Olhei para o menino novamente e quando a família se levantou, ele já
havia me invadido demais, resolvi fumar.
Ainda embriagada por aquela cara grande, a do menino, outra cara apareceu em
segundos. Barba grossa, rosto fino, alma solta: lembra de mim? Assustada,
pesquisei nos arquivos da memória aquele rosto e nada. Alguns segundos e disse: tira o óculos escuro, falei um pouco nervosa sem saber
por qual motivo. Amigo da sua irmã, disse rapidamente, pois estava atrasado.
Saiu apressado, disse adeus, acenei com a mão e ele seguiu. Voltou depois de
alguns minutos, tomou um café, bebi sua água, ele me chamou de Mariana pela
segunda vez e se apresentou: meu nome é Luís. Pensei dentro do pensamento, o
nome do meu pai. Esqueci de imediato. Eu só sei que o Luís planta, que vive no
meio do mato, que gosta de andar sem rumo, que o Luís ao mesmo tempo em que
sabe da arte dizer, sabe da arte de pensar e fazer, apesar das contradições que
não tive tempo de perceber, a não ser as minhas. Falamos sem parar, quanto
assunto havia entre nós. Ele seguiu, eu fiquei.
Entrei no avião aflita, realmente percebi que tenho medo dessas coisas
que flutuam. Abri o livro da Clarice, Perto do Coração Selvagem, engoli as
páginas tentando achar algo que preenchesse tamanho vazio ou que me aproximasse
do chão. Leitura errada. Eu buscava uma frase, uma única. A mulher ao meu lado
lia algo sobre negócios e imaginei, mesmo perto dela, da distância de nossas
leituras. Que nada, talvez buscasse algo, o livro parecia um guia de como se
fazer bons negócios e viver disso. Talvez esse era o livro certo pra mim, um livro prático. Realmente não estava tão longe dela, sempre
buscamos algo mesmo sem saber o que é que se busca?
Guarulhos. Cheguei. Os pés no chão e o pescoço, como sempre, duro. O
corpo quase concreto. Senti uma leveza, mas logo escondi a liberdade de estar
sozinha, tencionei as pernas, me senti funda e densa, estava em São Paulo. E
quantas pessoas eu vi e que poderia descrever a tinta de cada olho, mas não se
pode escrever tudo. O menino ficou em mim, aquele olho de bicho maldoso, falso
e era apenas um menino, invento uma lucidez agora. E que mal tem se me pareço igual
a ele, falsa dos olhos.
Amei, descobre os outros e se descobre também.
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