quarta-feira, 26 de março de 2014

O formato do abandono

No primeiro dia minha mãe disse tranquila  crua: vá molhar o pé no mar. Eu, que já sabia o quanto era obcecado por suas pernas, pensei se trocaria ela pela imensidão assustadora. Olhei fixamente em seus olhos como de costume. Ela virou o rosto. Devia ter medo de mim, do meu amor, dos meus olhos de fome. Segurei em sua perna quase arranhando suas coxas, aquele cheiro de creme que era naturalmente dela. Mas corri leve e sincero. Corri ofegante em direção ao mar. As pernas finas, tortas, inconsequentes.  Esbarrei desajeitado nos homens que olhavam de longe as ondas repetitivas, mas nunca iguais. Homens covardes que protegiam as mulheres deitadas esfolando o corpo submisso na areia que invadia os cantos e a dobra dos seios rodeando os bicos escuros e caídos. Depois a areia se ajeitava nas virilhas misturada aos pelos cheios e grossos que vazavam nas laterais. A primeira onda tocou os meus dedos. Gostei do molhado. Aquela espuma febril ao mesmo tempo morna. Arrisquei um passo quase atrás. Segui. A água batendo na canela. Os pelos eriçados da brisa que suava medrosa. As pequenas gotas encrustadas, gordas de sal, presas a minha pele de menino. A metade do corpo livre, outra submersa, a areia comendo o tornozelo lá embaixo. Já era um menino, voltar explicaria meu fracasso. O olhar de minha mãe escreveria a palavra covardia. E sabia, eu sabia que os homens já nasciam com o peso do mundo, de serem homens de ombros largos e fortes. Embaraçado, olhei os guarda-sóis distantes. E foi nesse dia, minha mãe foi embora. Eu era apenas um menino. Troquei-a pelo mar e ela seguiu me trocando por outras vidas. Mas não preciso dar explicações, porque não sei. Havia um mistério nesse dia, ela estava triste e ansiosa, eu vi. A água ressaqueada de urina limpava meu umbigo sujo que nunca haviam limpado. A segunda onda me deu uma rasteira madura. Afundei na horizontal, a água invadia todos os meus buracos. Comi sem querer comer o meu catarro e o abandono. O sal ressecando a boca. Eu ali, ia e não ia, afogava no mesmo lugar. Um ato medíocre do mar. Girava feito o mundo, espatifado, encoberto. O corpo em fragmentos de tanto rolar: só era um menino engolindo pela primeira vez o desespero de viver. E a culpa foi minha e do mar, é essa ânsia de abraçar e molhar tudo, de ser grande. Depois alguém me puxou bruscamente pelo braço direito feito peixe morto pendurado, enganchado. Mas esperava a mão dura de minha mãe e ela não veio. Não era mais um menino.

Minha barba tem o formato do abandono. Hoje arrastei lá de casa, há poucos metros daqui, em tropeços, a cadeira em que minha descansava nas tardes inúteis de domingo, sempre com um pano nos olhos para não ver a claridade, fingindo um cochilo, o silêncio. Os pés tortos da cadeira construíram retas na areia, o caminho linear de minha vida. Sentei de costas para você e desculpe as curvas de minha coluna, foi o tempo da espera. Ainda não te perdoei. Mesmo sem te ver, imagino as ondas tristes e sujas. Os homens também te feriram, eu sei. As garrafas boiando, a merda toda deles que limpam a bunda como eu, mas sempre sentem os restos e disfarçam o que ficou. Esquecem. E você vai e sempre volta. Nunca se ausenta. Muda o ritmo e a cor. É essa facilidade de ser diferente a cada minuto da vida. E minha mãe nunca mais voltou. E fico, espero até nem sei. Confesso que você me dá essa esperança funda de que como as ondas, ela vai voltar mesmo velha, arrastando a velhice pela pele. Amassada, covarde como eu, ma vai voltar não tão elegante, e sim, crua dos olhos.

Eu sou o mesmo homem, não mudei em nada. Isso é tão triste, eu sei. Também não perdoei quase ninguém. Não sei ser generoso com o mundo, não sei ser de graça. Ontem vi uma mulher com a perna ferida, exposta. As moscas lambiam a espuma da perna dela. E não era só a perna que estava inflamada, coberta de pus, amarelada como um estômago que só sabe pedir. É o mundo. É você. Sou eu. E não consegui ajuda-la. Eu tentei, mas também a culpo de algo que eu não sei. Estamos a sós.Já esperava esse momento, te conheço há muito, mesmo de longe. Observei seu modo de operar da janela de casa. Os horários em que você se esconde. O momento em que cresce e sente fome. Eu me tornei um homem obcecado por você, já que não tinha a quem mais olhar.

Olho para o relógio, a perna traseira da cadeira quebra. A espuma bate, esse é o instante em que você se sente poderoso como os homens imbecis, repete o mesmo ato, sempre consciente, sabido de tudo. É na beirada que você engole, quando a tarde some, quando o sol falta. Tudo falta. A cadeira afunda e encontra uma posição, depois desorganiza como nossas cabeças ocas. Nós somos culpados. De costas o medo aumenta. Sempre achei perigoso sentar à beira. Finjo força, enfrento sua imundice novamente. Eu só quero ser aceito por alguém, pela morte. Olho a cidade vazia, a casa de minha mãe escura como se estivesse toda ela vestida de cobertor, abraçada e quente. É só isso, um abraço molhado e talvez te perdoe.




segunda-feira, 11 de novembro de 2013

O diálogo com a escrita

Ontem me senti velha, apesar da pequena idade. Nesse mesmo dia eu comecei a escrever. Mas isso aconteceu ontem, no passado. Eu conversei com ela, com a escrita. Disse o quanto tenho medo de nós, do que possa acontecer depois dessa palavra. Sentei de frente para o jardim, no centro, a cadeira firme, os pés bem apoiados. Eu no meio do jardim quadrado, paredes brancas e suaves. A mistura do sépia, as luzes amarelas fechadas encostadas ao chão, numa distância confortável que pudesse iluminar a parede esquerda, a das samambaias entrelaçadas às orquídeas. Exatamente um verde sépia, uma cor antiga. Eu vi meu rosto. A cara branca, o fundo dos olhos sem história. Eu vi meus olhos tristes e velhos. Eu me senti cansada e envelhecida justamente na fina dobra em cima do olho. Vi o peso das casas, os tijolos pendurados nos cílios. Cai no meu corpo para ver que peso real eu tenho.

No instante em que sentei na cadeira de acolchoado branco quase macio, acendi meu cigarro como se fosse o último, e estranho. Foi nessa pausa entre a chama do isqueiro: encontrei com ela tão pulsante e ela escorria em letras no concreto acinzentado que cobre a terra do jardim. As plantas, já nem sei se eram plantas, pareciam tão vivas e verticais agarradas até o final da parede, tão humanas, agitadas e barulhentas. Pareciam mulheres de boca larga, lúcidas e profundas. Conversei com a escrita, contei a ela uma história curta de minha infância, um exercício de escola. Ela riu, achou que não era importante o fato da minha professora de português duvidar se eu havia escrito um haicai ou se havia copiado. Fiquei nervosa, apesar de ser aparentemente tranqüila na casca. Pois falei alto, me posicionei como se tivesse, naquela idade, me tornado uma mulher. Gritei escondida dentro do pensamento. Eu escrevi, disse com a própria voz àquela quase mulher interessante.

Há quanto tempo não escrevo nada. Eu comecei ontem, mas parece tarde. Como se meu corpo tivesse acordado, longe, do outro lado das cidades sem fim. Distante como eu e meu pai. Pois ainda na cadeira, cruzei as pernas, usava um chinelo marrom, um pijama verde como seu eu fizesse parte da composição arquitetônica do jardim, os ramos finos e infantis de algumas plantas, pêlos ainda na raiz, ingênuos como o de meninas. Levantei expansiva e comecei a conversar mexendo as mãos de forma tão racional e segura que fui mesmo, nesta noite, pura intuição. 

Meu corpo parece pronto. Entende? Eu me enlacei em você, mas porque só agora. Penso que ficamos distantes por anos sem ter a dimensão da história. Eu sei que você estava escrevendo o mundo, no entanto, você é mais que uma representação de nós. Ela me olhou como se eu a ofendesse. Um silêncio, uma pausa do escrever e não do pensamento, o que já era esperado. Nós sabemos. Quanto mais se escreve, mais silêncio. É como escrever o desejo em um deserto? E os desertos sempre me parecem mergulhados no mistério. Eu não sei, ao certo, a que tipo de escrita você é. Prefiro que seja nenhuma, mas que seja necessária. E confesso: eu duvido de nós. Estamos mais perto do fracasso, na beirada da madeira, na borda. No porto. Parecemos falsas, você não concorda? Também não sei responder. Talvez falsas, inventivas e verdadeiras. Talvez eu tenha encontrado aquilo que ultrapassa uma inteireza e olha como você é grande se considerarmos os nossos buracos, as nossas lacunas, os nossos furos, a nossa incansável e frágil busca. 

E depois que nos encontramos na noite de ontem, em que tudo era vivo demais, um dia lúcido em que nós denominados de perigoso, quase uma tormenta de desejos confusos, vi o quanto sua epiderme estava atravessada pela fragilidade dos dias e dos anos. Percebi que você tinha buracos no corpo, assim como eu. Saber do seu vazio não me causou nenhuma decepção, escutar o seu abismo e sua escrita da escrita vomitava apressada quase o pensamento, mas sabemos da impossibilidade de dizer tudo, por isso, o quase. Nem você que é a própria escrita, pode dizer tudo. O fato é que você escrita é incompleta como as mulheres, mesmo as mais lúcidas. Estas mulheres são tão especiais, embora, estas sejam inteiramente perigosas. Talvez eu não enxergue o quanto tenho me inscrito nesta palavra. Mas eu tenho a leve sensação de que quando você escreve essa palavra direcionada a mim, você se torna uma delas sem perceber, porque o efeito que causei em você com os meus escritos a faz ser você mesma o seu próprio perigo. Isso não é uma pergunta, apesar de ver seu ponto de interrogação. 

Estava delirante. Foi importante saber que você não preencheu nada, que você, às vezes, não se considera a própria escrita. Em que instante, pela madrugada, me enlacei em você e de um puro, puro sentimento, compreendi que meu corpo assim como as minhas palavras dançam sem pausa alguma?

E você me aparece no mês de novembro, no momento em que escutava as maritacas na arvore alta na frente de casa. Digo isso, porque sei que nosso diálogo não será breve, e vou esquecer, certamente, as maritacas do mês de novembro. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

menino mediano

Tomei um café com os lábios acelerados mesmo sabendo que não estava atrasada para o vôo. Na verdade havia chegado há muito tempo no aeroporto de Confins. Talvez, nesses minutos de descanso, já pensava em São Paulo e na multidão que nada se parece a multidão de Ouro Preto. Ansiosa, tentei segurar as pernas como faço exatos 26 anos. Elas já aprenderam a se movimentar sozinhas como se nenhum impulso partisse de mim, às vezes me parecem tão solitárias. Pensei na escrita, peguei o livro da Clarice Lispector e logo larguei. Lembrei do livro do Kafka, Carta ao pai, quis ler de novo, mas não seria uma leitura fácil. Depois uma linha fina me atravessou trazendo palavras. Fiquei tomada por escrever algo no meu caderno, mas a sensação passou, porque inventei que ele estava no fundo da mochila. Desisti. Sentada na cadeira, eu era a própria ansiedade que já escapa a qualquer controle, mesmo sabendo que tento controlar tudo.

Na mesa da frente, um menino de sobrancelhas largas e rosto bem definido. Fiquei ali tomando meu café e olhando para ele. Penso que não fui nada discreta. É que seu rosto tinha outra idade, sua maneira distinta de sentar-se à mesa, sua coluna decidida. Seu pai a frente e a mãe ao lado. Pois ele encarava o pai como se vivesse uma batalha, uma guerra escondida. Imaginei que a essa altura da vida, o menino já havia escrito uma carta ao pai, dizendo coisas terríveis sem medo algum, confessando o seu desprezo e o seu ódio e poderia a qualquer momento entregá-la, não no final da vida, mas, naquele dia. O texto não seria bom, mas necessário como a escrita. E seu olhar era tão irônico que até fiquei com medo daquele menino mediano. O pai o olhava, mas não consegui identificar a que sensação o olhar cínico do filho lhe causava, por menor que fosse o efeito. Depois, ele pegou o celular e ali, de frente para a tela, olhava seu nariz um tanto empinado como ele. Parou a fotografia da cara no buraco direito, posteriormente, passou para o buraco esquerdo. Deslizava a mão levemente pelos dois buracos tentando limpar os resquícios e, realmente, parecia ilusória a sua tentativa de limpar o nariz que nada tinha de sujo, pelo menos da distância a que meus olhos viam. 

A mãe, nada. Era como se não estivesse em família. Flutuava sem saber, o corpo longe, a mesa pequena, as respirações entrecortadas e isso não era motivo para sentir aproximação alguma. Desviei o olhar por alguns segundos e nesse intervalo do meu olho, pensei em escrever uma carta ao meu pai, mas não tenho tanta coragem, pelo menos, agora, no presente. E não seria uma escrita fácil, pelo contrário, seria dolorida como nosso passado, mas me sinto tão lúcida que sei com tamanha clareza que essas palavras são necessárias. No entanto, não me sinto preparada, talvez não tivesse o prazer do texto, pois seria uma escrita perigosa. Tenho pensado no perigo que atravessa as palavras e como tem me consumido enxergar o meu fracasso diante delas. Olhei para o menino novamente e quando a família se levantou, ele já havia me invadido demais, resolvi fumar. 

Ainda embriagada por aquela cara grande, a do menino, outra cara apareceu em segundos. Barba grossa, rosto fino, alma solta: lembra de mim? Assustada, pesquisei nos arquivos da memória aquele rosto e nada. Alguns segundos e disse: tira o óculos escuro, falei um pouco nervosa sem saber por qual motivo. Amigo da sua irmã, disse rapidamente, pois estava atrasado. Saiu apressado, disse adeus, acenei com a mão e ele seguiu. Voltou depois de alguns minutos, tomou um café, bebi sua água, ele me chamou de Mariana pela segunda vez e se apresentou: meu nome é Luís. Pensei dentro do pensamento, o nome do meu pai. Esqueci de imediato. Eu só sei que o Luís planta, que vive no meio do mato, que gosta de andar sem rumo, que o Luís ao mesmo tempo em que sabe da arte dizer, sabe da arte de pensar e fazer, apesar das contradições que não tive tempo de perceber, a não ser as minhas. Falamos sem parar, quanto assunto havia entre nós. Ele seguiu, eu fiquei. 

Entrei no avião aflita, realmente percebi que tenho medo dessas coisas que flutuam. Abri o livro da Clarice, Perto do Coração Selvagem, engoli as páginas tentando achar algo que preenchesse tamanho vazio ou que me aproximasse do chão. Leitura errada. Eu buscava uma frase, uma única. A mulher ao meu lado lia algo sobre negócios e imaginei, mesmo perto dela, da distância de nossas leituras. Que nada, talvez buscasse algo, o livro parecia um guia de como se fazer bons negócios e viver disso. Talvez esse era o livro certo pra mim, um livro prático. Realmente não estava tão longe dela, sempre buscamos algo mesmo sem saber o que é que se busca? 

Guarulhos. Cheguei. Os pés no chão e o pescoço, como sempre, duro. O corpo quase concreto. Senti uma leveza, mas logo escondi a liberdade de estar sozinha, tencionei as pernas, me senti funda e densa, estava em São Paulo. E quantas pessoas eu vi e que poderia descrever a tinta de cada olho, mas não se pode escrever tudo. O menino ficou em mim, aquele olho de bicho maldoso, falso e era apenas um menino, invento uma lucidez agora. E que mal tem se me pareço igual a ele, falsa dos olhos.     

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O mergulho no concreto - O corpo ferido

Chuva fina, boba. Os dedos congelados e a palavra escrita. A única palavra que me restou e com ela quero viver pra sempre. Palavras fugidias, obviamente, mas, por hora, confio totalmente nelas, de resto... Restos. Escrevo e sinto o silêncio. São Paulo da garoa cinza. E me calo, calo o outro para não ser ferida. E tudo tem me ferido, sim: por dentro, por fora, nos buracos do meu corpo, embaixo das unhas, até nos cotovelos. E já dizia Cremilda naquela sala gelada, na USP: afeto. 
Sinto-me violentada...  não há de ser nada não. 



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O mergulho no concreto - Cinco linhas


A onda bate na cara sem dó de mim. Até o mar parece cruel. Um cansaço.
São Paulo da não mansidão. Perco-me no trem mesmo sabendo o caminho, mesmo
sabendo de mim. Eu vou te engolir, cidade-dinheiro. Na testa, escrevo letras com uma caneta
invisível - CPTM. Fui marcada como os bois do interior de Minas. Eu queria mesmo era encontrar
com a Gal Costa e tomar um bom errado vinho. E dizer: absurda, cidade absurda. Que bad trip.



segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O mergulho no concreto - São Paulo faz escrever


Escrevo lentamente. Aos poucos as palavras escondidas aparecem. Algumas sem ver, outras
sem sentir, outras tantas escapam. Algumas chegam em cheiros e cor. 
Depois de escrever um livro, depois da volta, minhas mãos morreram. A morte do autor e a chegada do leitor. 
Confesso que minhas mãos precisavam de um tempo. Ontem elas nasceram, mas envelheceram. Daqui a pouco 26... 
Não leio "Depois da Volta". Os dias correm e meu livro parece morto, uma produção artística qualquer. O bonito é que me aproximo dele e já não tenho medo das palavras e do que não contei, do que faltou.
Ele está aqui e o que faltou eu sei não sei. E a cada dia agradeço aos buracos negros e as lacunas da escrita. Esse é o verdadeiro mistério, o que a escrita não alcança. São Paulo faz escrever.
Faz frio, não o frio parado de Ouro Preto. Um vento leve e úmido bate na garganta. Uma garoa boba.
Sempre quis morar aqui e cá estou. 
Lembro-me da feira perto da casa da dona Lídia, minha avô. A feira da rua Boa vista, em Santo André.
E nas feiras de São Paulo o que não falta é pastel. Pastel feito pelos japoneses, chineses, coreanos... acompanhados pelos saquinhos de vinagrete. Aí você abre o saquinho e joga o vinagrete dentro do pastel. O bom mesmo é comer essa mistura, tomar um caldo de cana e sentar ali mesmo, próximo a panela branca cheia de óleo velho numa cadeira de plástico velha suja.
No início da feira, aquele cheiro de peixe. Tampava o nariz, mas o cheiro passava sem pedir licença.
Depois, as verduras e frutas. Homens e mulheres gritando, um sotaque bruto, mas simpático.
Nunca chegamos até o final da feira. O fim não parecia interessante. Eu gosto mesmo é de goiaba vermelha e você?
Hoje corri numa esteira, conheci uma academia paulistana e a Dilma, mulher baiana. Academia é tudo igual. Eu não gosto, mas o corpo estava lá. Só precisava correr, correr, correr, independente do lugar. 3 km e só. É pouco. 40 Minutos. E penso: tudo bem Natália. Tudo bem...
Queria escrever sobre o bolinho de bacalhau ou do sanduíche de mortadela do mercado Municipal. Amanhã, talvez. Tenho tempo, posso caminhar. 

#omergulhonoconcreto

domingo, 4 de agosto de 2013

O mergulho no concreto - A cidade sem freio

Pela manhã, nos dias comuns de um passado próximo, sonhava com o concreto que beijava o céu. Eis, São Paulo. 
Pela noite, o que habita as vias largas da cidade de São Paulo são os carros e a poluição que entra acelerada nos buracos do nariz. A outra poluição, aparece no canto da unha, um resquício concreto. 
Em cada ponto da cidade densa, um protagonista.
Ora a espuma branca que de tão branca, engana. Ora, uma viga de concreto gigantesca pronta para a estreia, preparada para ficar de pé, na vertical.
A madrugada foi preenchida pelo barulho insuportável de vozes mil. 
Paramos numa padaria que nunca dorme. Não há férias para os copos, talheres e pratos. E nossas bocas também nunca saem de férias, sempre mastigando algo, comendo a vida.
A pizza chega rápido, o copo com gelo também. Queria comer devagar, pausadamente, no entanto, parece ser impossível. Quanta ansiedade e a madrugada muda de lugar, do silêncio para o grito, o ruído
que invade. 
Como mergulhar no concreto? E agora?
Agora, tudo ou nada. Ou como São Paulo... ou ela me come.
No metrô, os sapatos solitários. Tanta gente, QUANTA TAMANHA solidão. 
Difícil ver alguém de chinelo na minhoca de ferro. Realmente é melhor esconder os pés, penso.
A cidade grande é violenta, ela afeta o corpo todo. 
E pensar que criamos esse monstro que cresce sem direção e sensibilidade.
Isso é só o começo. 


#omergulhonoconcreto

sábado, 8 de junho de 2013

2:29.

Vejo pequenos rabiscos de luzes, os postes solitários
das ruas distantes.  Penso neles,  os transeuntes noturnos. Olhos gigantes. Os "pensageiros" da noite fria, os postes. Escuto um inglês-baiano. Caetano. Elis. 
Os diálogos na sala  e me perco na epiderme fina dos dedos quase maduros. Minhas mãos formigam. Penso naquela mulher absurda. Penso naquela palavra, aquela escondida. 
Penso tanto que já me foi. Um gole de vinho, um trago cheio.
Vivo o marrom no marrom. Uma casa de madeira feito sonho. 
Uma casa aberta assim como a vida.
Penso tanto que não escrevo nada. 
Quando foi a última vez que entrei numa piscina qualquer e abracei a água?
Que tempo era essa  em que eu mergulhava com olhos abertos e lá no fundo dançava
empurrando a água?
Tanta coisa aconteceu. Nasci velha. 
Você entende? E não tem que entender. Por favor, palavra é coisa rara.
Palavra tem cheiro, som, sopros. Suspiro. A palavra também nada. Nada no abismo. 
Entre um ponto e outro há um abismo. Buraco que posso preencher ou não. Então há um escolha?
Eu posso matar você. Eu posso ser outra. Outras. Também posso pensar nessa mulher absurda
girando sem parar. Eu posso inventar um amor. Uma mulher. Homens sem destino. 
Ruas sem fim. Pernas a voar.
Quanta coisa posso inventar. Que alívio. 
Entenda o meu silêncio. Quanto mais silêncio, mais danço.



quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O livro de ficção da vovó

- Natália, a campainha tá tocando? 
- Olho pra cima e tento escutar.
- Vó, não tá tocando.

- Natália, vai lá no portão e vê se tem alguém querendo entrar?
- Ok, vó.
  Saio da sala, fico escondida na cozinha por trinta segundos.
- Vó, não tem ninguém lá.
- Tudo bem.

- Natália, sua mãe já chegou?
- Vó, minha mãe tá na Serra do Salitre, ela vai chegar amanhã bem cedinho.
- Tá bom.

Depois de cinco minutos.
- Natália, fala pra sua mãe sair da vizinha e parar de...
- Vó, a minha mãe tá na Serra do Salitre...
- Ah, tá bom.

- Natália, quero ir ao banheiro.
- Não tranca a porta vó!
E aí a vó tranca a porta.

Dez horas da noite.
- Natália, sua mãe já chegou?
- Vó, a minha mãe tá na Fernão Dias, dentro do ônibus.
- Você jura pela saúde da sua mãe?
- Eu juro pela saúde da nossa família.
- Você tá mentindo pra mim Natália?
- Vó, eu tô falando a verdade.
- Ah, tá bom.

E ela dormiu. 

O livro de ficção da minha avó é mais legal que o meu livro de ficção. A história real que a minha avó tem na cabeça é boa! Tem soldado, tem bombeiro, pessoas do mal e até vacas. Tem a morte, tem gente que fica na vizinha confabulando sobre nós. Tem até o vô que morreu já faz tempo. Tem sequestro e vozes que falam dentro dela.
Minha avó vive o real, eu é que tô delirando. 




segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Talvez rua direita

    Há ruas que são tímidas, complexas, preconceituosas, evangélicas, promíscuas, livres, sentimentais. Ainda não sei exato, um nome que caracteriza minha rua, talvez direita. Quando começa a clarear, vou apagando, mas não de uma vez só. Num cochilo gostoso escuto as primeiras vozes, a dos trabalhadores. E só vai chegando, passando, parando gente. Muitos milhões de pés surgem desvairados. Vejo tudo, até o mais profundo de minha rua. Amo essa gente que vai, sem medo, que vive. Sou lampião, mas não o da Maria Bonita. E fomos fixados aqui, do lado direito, da Rua Direita, no século XVIII. E faz tempo. Não tenho pernas, não tenho olhos, mas tenho memória. E a minha rua não apaga nada. De uns séculos pra cá, muita coisa mudou. Pensei até que minha rua tinha um pouco da rua de Monet, a Montorgueil, em Paris. Mas isso foi coisa que ouvi, daqui de cima. Estou meio velho, no entanto, entendo tudo dessa minha rua que morre de silêncio quando chega à noite. E acendo novamente, forte e faço luz.
    A noite é só mistério, ares de nostalgia, de um tempo que nem sei. Vivo o presente, o “instante já”, mas é difícil enxergar, estar nele. Não vou negar, sinto falta dos carros antigos, das rodas que passavam devagar, dos encontros românticos demorados, das serestas ao lado da minha amiga janela desbotada pelo tempo. Bons tempos e vi tudo se transformar. As cores das casas, das portas, dos vestidos cada vez mais encurtados. E comércios vão e vem, sem ordem.
    De dia é uma loucura, literalmente. Celular, celulares, dinheiro, artesanato, um e noventa e nove, vasilhas, colheres baratas. Barata também tem, à noite. Sapatos a rodo. Camisetas penduradas com desenhos de Ouro Preto, tapetes e papelarias, aos montes. A Rua Direita de Mariana é mais comportada que a de Ouro Preto. Calma. Não sou eu quem diz, as pessoas vão falando. Tem gente que fica aqui, no frio, namorando, mas não embaixo de mim, eles preferem o escurinho. Tem gente que fica lá, subindo e descendo a ladeira, descontrolados. É que minha rua não é noturna, rua de balada, de cafés. Um pouco monótona, mas eu gosto. As vezes quero movimento, música. E passa aquele cara com um fone no ouvido e penso: aumenta essa música aí! Onde estão as caixas de som? Quero luz. Sou lampião e memória viva. E não esqueço um dia em que me tiraram daqui, por alguns instantes, pra trocar minha cor. Preto no preto. Foi ótimo, comecei a ver as cucas legais e a modernidade chegar, sem medo. Porque as coisas mudam e eu também.

sábado, 6 de outubro de 2012

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Saquê e outros cigarros



Súbita alegria.
Um lugar. Lugar meu.
O mesmo de Caetano, Gil, Gal, Oticica e mimeógrafos.
Elises.
Artistas.
Meus amigos, grandes queridos companheiros do presente: nós estamos e pertencemos, o mesmo lugar.
Seguimos, pois.
Haiti, Bye Bye Brasil, Roda Viva, Expresso 2222, Varejão, Lispector, Woof, Guimarães, Montenegro, Jobim, Yamandu, Nilo, rio... nós.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Eu sei que cheiro a Bolívia tem: lhama.

Depois de alguns dias em La Paz, num hostel localizado no centro velho da capital, minha tristeza aumentava. Próximo do Natal, ali, no centro velho, tudo cheirava a pobreza, menos nós, que nos deliciávamos no calor borbulhante de uma jacuzzi. Que ironia. Pedíamos cervejas e mais cervejas. Pernas brasileiras e espanholas se deliciavam nas bolhas pulsantes que faziam cócegas em nossas costas, no corpo todo. Merecedor? Não sei. Sentia uma cansaço, queria ao menos alguns segundos de conforto. Depois de subir o norte argentino, estava exausta. Um paradoxo e eu sempre pensando no que estava fora e dentro de mim, a rua. Minha cabeça fritava. Jacuzzi, pobreza, jacuzzi, pobreza...

Éramos os únicos que alegravam aquele albergue inflamado de gringos. Franceses, alemães e nós, gringos: brasileiros e espanhóis. Mas havia uma diferença absurda nos sorrisos, nas falas, nos olhares. Uma aproximação e nada.

Um brasileiro do sul trabalhava como garçom no bar do hostel, mas demorei um pouco para descobrir sua nacionalidade. Depois conversamos, trocamos experiências. Lembro que ele tinha uma cara cumprida, os olhos grandes e era magrelo. Ele queria voltar para o Brasil, estava cansado de rodar de hostel em hostel. Eu e Miguel, um grande amigo mineiro, escutávamos sua história viajante.

Percebia minha euforia interna sobre rodar e rodar de hostel em hostel, de escapulir e não voltar mais,  assim como ele. E, naquele momento, tudo fazia sentido. Planejava meu futuro próximo:
- então é isso, pego uma mochila, dinheiro e pronto. Um vida com línguas diversas. Tudo êfemero, tudo. As pessoas, os lugares, a celeridade dos passos, desencontros, linhas que iam se formando no meu mapa da vida. Uma rebuliço de conexões, eu no barco, eu no mundo e para o mundo.
Passado o sonho, seguimos para o centro novo.

La paz é a cidade 360. Imagine o Rio de Janeiro e as favelas. Agora pense em montanhas gigantes, um círculo, um buraco no meio. Pense nas casas empuleiradas, uma em cima da outra. Milhões. Todas de cor marrom, todas. Pense na favela da rocinha e todas as luzes que acendem quando a noite chega. Agora, triplique, eleve a mil.

Uma cidade paradoxal. O centro velho e o centro novo. Camelôs, calcinhas, comida, sujeira, ladeiras, casarões antigos, mistura de músicas, trânsito, rincões, dinheiro, um carnaval fora de época, um carnaval, para mim, sofrido. Shopping, quase Natal, frango, arroz, chuva, carros modernos, ruas largas, dinheiro, money, gringos, billetes, real, presentes.

Tanta loucura, meu deus. Eu estava feliz, claro. Era só uma maneira de viajar como um "pensageiro", palavra de Mia Couto. Era só um jeito de não ficar louca. Era só uma forma de pensar na América Latina, me colocar. De fato, eu não quero escrever esse relato de maneira a camuflar um sentimento de "sujeira" que existe na América do Sul. Não quero "tirar os mendigos da rua" se é que vocês entendem.

Nossa história têm rugas antigas e profundas, cortes imperialistas. E uma brutalidade que marca qualquer "pensageiro" que tem a proposta e sensibilidade para ver, para olhar além das compras de Natal. Lembro que estava na rodoviária de La Paz partindo para Copabacana, rumo ao lago Titicaca, e saí para fumar um cigarro, uma mulher me parou e pediu para olhar suas malas. Quando ela voltou, pedi que me desse uma entrevista falando sobre a Bolívia, ela topou. Perguntei a ela sobre Potosí e ela disse com os olhos de fogo: - Potosí deu muito ao mundo e o mundo deve muito a Potosí.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

quando tudo e nada

é... essa coisa de despedida...
despedida que tem ponto...

"começar de novo e contar comigo".

O terminal da vida, a rodoviária dos sonhos, os desencontros... sobreviver a espera. Retiro. Me retiro.
Todos os dias um adeus, todos os dias dessa vida uma perda e não nos damos conta.
Me inflamo de sentimentos, dia a dia, pouco a pouco. Um passeio até a padaria, adeus.
Cinco passos e mudo. Um passo, um copo de vinho, um olhar e mudo. Um conversa rala com o vizinho e adeus. Um filme, acabou. O amor dentro da gaveta. A poeira que insiste. O cigarro que fica. Atrevido. Um sopro no pescoço, me reprimo.
Quantas pessoas irão ficar? Quantos amores? Quantas casas? Quantas camas? Quantas pernas?
Palavras fora de ordem, que bom. Eu, meu deus. Eu já sei.
A distância, a ausência. Os que ficaram, no entanto, nunca estiveram. Nunca.
Ficava tão nervosa quando os argentinos varriam o passeio jogando as folhas no lixo. Folhas mortas, um inverno dolorido. E eu sonhando.
Não quero mais saber de meias-metades-pequenas-palavras. Não. Chega.
Quero sair quando quero,voltar quando sentir que devo voltar. Um consumo interno, desnecessário.
Não quero falar de política senhores.
Não quero amores pela metade.
Quero a Psicanálise, a Literatura, um bom-macio-duro divã. Uma fazenda e um pé qualquer. Mostarda.
Não quero você, nem você, muito menos você.
Saudade de mim. Cheguei, voltei. Calma. E na calma, um adeus...





quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Ingazeira

Timidamente, estou.
"Há folhas no meu coração, é o tempo".
Quando abro os olhos pela manhã me enebrio de palavras, palavras mil.
Antes, antes de abrir, antes, lá no incosciente, tudo gira. Gira sem parar. Incosciente presente, não ausência. Incosciente  que diz muito, diz tudo.
Ouço músicas e canções do dia anterior, de dias passados. Lacunas, vazios. Essa é a minha escrita, a escrita feminina. Essa sou eu. Mulher. Ectcetara e tal...
Mulheres de lã. Que palavra linda, lã. Palavra que desliza sem ser puxada por outra.
Não quero organizar nada pela manhã, é como vomitar sem pensar no que saiu.
Hoje acordei e aquele rato de um texto passado voltou, mas esse rato é tão diferente. Um rato mais calma, quase maduro. Digo quase porque é sempre quase. Sempre há o que aprender. Sempre há um caminho. Como é bom viver, ser mulher, saber que várias estão aqui prontas para nascer. Flor de ingazeira, Pernambuco.
Me embriago de gente ao mesmo tempo estou longe. Saudade das histórias de vida que escrevia.
Saudade do Morro do Santana, da Regina.
Saudade da minha viagem, de ser cigana classe média. Que ironia.
Saudade de La Paz, Arequipa, La Plata e Copacabana.
Saudade de amar infinitamente, de cair em cores.
Escrevo e é assim. Escritora, escritora... Em que lugar coloquei o jornalismo? A ficção me pegou. Escritora, eu?
Amo as rodoviárias, a gordura, os "pensageiros".
No dia 25 de setembro resgatei uma pessoa, no dia 25 chorei alegremente pensando na minha história, nos lugares que pisei, nos lugares que ainda não estive. No dia 25 guardei uma coisa. No dia 25 me senti poderosa. No dia 25 bebi margarita com os grandes pequenos amigos. No dia 25 falei da China, de semiótica e significante. Preciso olhar para a primavera, é preciso...


Flor de Ingazeira, "quantos dentes terei que beijar, pra que um dia do gosto dos lábios possa desfrutar". João Bosco

Qué mate?Tatiana Grisel

"loucas as pessoas que não usam azeite" Raísa Geribello.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Gozo

Um final de semana fora de casa, no mato, na Índia, tomando chá e comendo sardinha fresca. O cheiro de incenso, a cara limpa, a fumaça cor de luz. Tanta coisa, tanta porta.
Um sentir quase cansativo, no entanto, revelador, místico, inventivo, real, afetuoso ...  para-além. Com alguns me sinto para-além, além palavra, "atrás do pensamento".
Talvez esse texto seja, então, para poucos. Para uma ou duas.
 Quero ser consciente dos encontros, do gozo que me sai verdadeiramente.
 Sigo com a minha pequena e genial coleção de CDs e gozo. Leio a biografia de Elis e gozo. Grito Clarice, Adélia e Virgínia. Gozo. Escrevo sobre nós, sobre mim, ultrapasso as bordas e gozo. Um gozo não idiota, um sopro de quem sabe o lugar que ocupa.
Que lucidez é essa que se aproxima? Estou mais calma. Tenho me posicionado... tenho. A fala sem muros e sorrio para o novo. Falo do Brasil, da classe média cega e compro, compro pensando.
Milhões de neguinhos, reis.
Maurício, por favor, me salve!
Lohan, meu querido francês ritualístico, me leve para a lagoa novamente. Fumamos a vida!
Vânia, me deixe entrar em sua voz. Conversamos sobre as células, a leveza. Vamos manter um diálogo sobre a mulher, carboidratos e proteínas.
Lúcia Castello Branco, nos encontramos no divã para tomar um vinho feito pela Psicanálise?
Quanta coisa deixei de comer, quantos lugares estive em três dias. "Da maior importância", tudo.
Eu gosto quando as portas se abrem, portas que já me habitavam e só precisava de alguém, de encontros, de gente que gruda e fica. Gente pouca.
Acendo novamente, forte e faço luz.
25 anos e uma cuca legal!

"Saiu à rua, escolheu demoradamente um saco de bombons. Terminou comprando um, bastante grande, de damasco. Quando dobrasse a esquina, chuparia o primeiro bombom, as mãos nos bolsos. Seus olhos se enterneceram pensando nisso. Por que não? - perguntou-se de repente irritado".

Perto do coração selvagem, Clarice Lispector.








 


sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Frases soltas

Voltei. Nem sei quantas vezes digitei essa palavra no TAL COTIDIANO. Novamente, no instante-já das palavras, da vida, de minha mesa, de minha lucidez. 
Comprei um bloquinho e comecei a rabiscar algumas frases, frases soltas, do cotidiano.

Não sei se é mais fácil fugir ou ficar cutucando até o final da vida, até o último segundo.
E vem a morte. Já sabemos o final. Que busca mais tonta, sem sentido.
Vamos morrer. Todos. Nós.
Vocês entendem...
Vamos morrer.

Eu quero construir uma casa na fazenda, tomar um vinho em dias de inverno com os empregados e falar
sobre coisas da vida. Dormir no mesmo quarto que eles e esparramar colchões no chão. Depois acordar ao 
som de qualquer música e beber uma caipirinha feita por mim. Quero ter duas filhas, negras. A primeira, Elis, a segunda, não sei.

vivenci-ar.ar 
Beatriz Noronha

con-vivência.

_ Construindo Júlio?
_ É. Construindo...

Minha casa não precisa ser grande, nada de exageros, porque os sonhos , os meus sonhos são pequenos, cheios, daqueles que explodem de alegria, de vida.
E a cada dia, todos os anos, até hoje, me sinto viva. Claro, viva quando alguém me corta, mais viva quando a verdade não é dita, mais viva porque não fugi, mais viva porque no final e até no final fui eu. Perdida e lúcida. Desequilibrada e travada. Forte e invadida. Complexa, complexa até nas últimas palavras. Eu falo simples, é preciso sentir. Sentir e só. 

Uma coisa é certa: uma mulher só se sente mulher quando se deleita com outra.

A natureza é tão perfeita que quando escurece, a tarde cai lentamente para que nossos olhos se acostumem
com o escuro. 

_ Como está a vida?
_ Gripada.

Estou um pouco sem ar. Muito e pouco. Pouco, pouco, quase nada. Viva.

Os galos cantam, todos os galos da cidade. Nela, aqui e lá, do lado real, iluminado e vivo.
Agora é noite. O barulho da escova de dente. A noite chegou. Dormimos para nunca mais, para o amanhã.






domingo, 11 de dezembro de 2011

De um lado a beleza, de outro o sofrimento

 Hoje a tarde passamos por Purmamarca uma cidadezinha quase feita de areia e pó a vinte minutos de Tilcara. Já estamos quase na fronteira com Bolivia. Agora a chuva cai lenta assim como esse povo que caminha com olhos e cabeca para baixo por entre as montanhas coloridas . Nunca vi um lugar tao maravilhoso e chego a sentir tristeza.
O povo aqui tem tracos bolivianos, tanto na cor como no cabelo. Mas os olhos dessa gente me dizem mais. Olhos que focam em um só lugar e que , apesar de ainda estarmos em terras argentinas, continuo achando que aqui é Bolivia. Talvez tenha me acostumado com os portenos e aquela maneira empinada de falar. É que Buenos Aires nao é Argentina? e estando aqui, penso que lá na capital a bolha comeca a crescer entre eles.
Aqui venta muito, estamos a dois mil e poucos metros e areia entra nos meus olhos. Talvez seja bom por agora, talvez eu nao queira enxergar que estamos naquela parte nao PULCRA da América do Sul e eu queria que o mundo olhasse pra essa gente de rosto forte de maneira distinta, nao como inferiores.
E fomos nós, ora bolas, porque essa gente anda assim como avestruz? Nós decidimos quem está em jogo, e qual é a bola da vez.
E me sinto uma turista branca de cabelo loiro e isso nao me apetece.
Quero acreditar em nós, no povo latino, na nossa maneira pura de bailar.
Por um lado a natureza quase explode de tanta beleza, por outro o sofrimento, a pele pedindo socorro, dinheiro trabalho, justica e tudo isso vai estar aqui dentro de mim pelo resto da vida.









Adíos Salta, estou em Tilcara

Nos despedimos de Salta as 5:30 da manha.
Já me acostumei com a palavra despedida. Deixar pessoas, lugares, ruas, becos, amigos, família, cidades, casas. .. o tempo passa e sempre penso que estou preparada para dar adeus, mas quando busco todas essas histórias sinto que fico cada vez mais emocionada e apegada a tudo que encontro por aí bailando no mundo.
Salta é uma cidade especial. Tenho tantos adjetivos, imagens, mas eles estao confusos.
Chegamos em Tilcara as 10:00 da manha. Estava dormindo no caminho e de repente aquele conglomerado de montanhas. Levei um susto e por segundos me perdi... cheguei perto de Deus e eu nao costumo falar dele, mas hoje eu senti essa natureza que quer falar  e Deus está, e ele é o universo. Me senti tao pequena, uma formiga no mundo, vagando sem rumo.
Peguei a máquina e num impeto me senti um turista japones que clica sem parar e eles vao engolindo todos os lugares, areias, arvores, gente, mercados, comidas... cultura.
As montanhas em Tilcara fazem chorar, e de novo, eu digo: é coisa divina, magia... saravá.
Quadros coloridos, pinceis... aquarelas do norte argentino. É sério, todas as cores estao aqui, nessas montanhas abencoadas pelos deuses e por nós.